9 de jul. de 2014

Uma derrota em sete movimentos

I.
Escrevo este texto no calor do momento. Talvez calor não seja a palavra exata para definir a apatia que impera, mas o importante é que fique bem claro que eu não entendi o que aconteceu e, possivelmente, jamais entenderei. 

II.
"Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são, cada uma a sua maneira."

Quando escreveu assim a primeira linha de seu célebre romance Anna Karenina, Tolstói não sabia que seria essa justamente essa que o eternizaria. Trata-se, provavelmente, do início de livro mais famoso da história da literatura mundial. Tolstói, igualmente, desconhecia que, um dia, o Brasil perderia para a Alemanha de 7 a 1, em um curioso esporte inventado na Inglaterra e que em breve se tornaria febre mundial.

Hoje, nós somos 200 milhões de indivíduos profundamente infelizes, cada a um a sua maneira. Sofremos a pior derrota de nossa história naquilo que, em tese, deveríamos ser melhores que todo mundo. Quanto maior a altura, maior o tombo. 

Na Copa das Copas, nós vimos a goleada das goleadas, a humilhação das humilhações, a mãe de todas as eliminações. O que dói mais é que poderia ter sido pior, mas os alemães não fizeram mais porque não quiseram. Perdemos de 7x1 por pena.

Para muitos, o humor foi uma válvula de escape. Confesso que fui desses. Busquei ao máximo rir para não chorar. 

Muitos ainda buscam explicações. Não existem. Desistam. Não vamos descobrir nunca o que aconteceu. O fato é que fomos massacrados. 

Vivamos com isso.

III.
Quando eu era criança, meu avô me contou, mais de uma vez, a história do Maracanazzo. Ele foi um dos milhares de cariocas que estavam no Maracanã naquela noite. Ouvi essa história mais de uma vez. De como ele quebrou seus óculos no trem, de como ele se espremeu no estádio o jogo inteiro, daquele cara alto que não deixava ele ver o jogo direito e, por fim, daquele silêncio, o maior silêncio do mundo, o mais triste, o mais alto, o mais longo. Um silêncio que durou mais de 50 anos.

Ouvia essa história atentamente, com respeito, fazendo referência à dor por ele sentida. Aliás, a maior sentida pela nação até então. Afinal, estava ouvindo a História. Amanhã, se encontrá-lo, poderei dizer que a minha geração ultrapassou a dele. O Mineiraschensfort ou qualquer que seja o nome dado é muito maior que o Maracanazzo.

Ambos os jogos podem ser considerados como pontos de inflexão. Entretanto, enquanto a derrota para o Uruguai representou uma nova fundação, sobre a qual o futebol brasileiro ressurgiu de forma magnífica em 1958, a derrota para a Alemanha foi justamente o contrário: hoje, nós decretamos a falência do futebol brasileiro.

É verdade, faz tempo que o futebol brasileiro já não encanta mais ninguém. Eu mesmo só conheci aquela escola de meias habilidosos, passes magníficos e dribles desconcertantes através de histórias de meu pai, meus tios, meu avô. Nosso futebol era quase como uma lenda mitológica: passado de pai para filho, de forma oral, através das gerações. Desse futebol, vi apenas lampejos.

Mas, até hoje, ainda nos respeitavam. Alguém ainda olhava para essa camisa amarela e pensava: "fodeu, é o Brasil." Ainda conseguíamos tirar uma onda de "país do futebol". Depois desses 7x1, as coisas nunca mais serão as mesmas. A goleada escancarou a nossa crise para o mundo.

Simbólico os aplausos no Mineirão após o sétimo gol. Foi muito mais que um reconhecimento da superioridade alemã. Foi quase que um rito de passagem. Ali, a torcida brasileira reconheceu um valor mais alto que se levantava, imponente. 

IV.
Na terra da antropofagia, a Alemanha engoliu o Brasil. 

Segundo consta, habitavam aqui tribos antropofágicas, que comiam a carne de seus inimigos derrotados com o intuito de absorverem suas virtudes. Esse hábito também virou um dos motes do movimento modernista brasileiro, que virou do avesso a literatura e a arte no país. O que me espanta é que, apesar disso, os alemães passaram quase um mês engolindo a gente e ninguém percebeu.

Começou logo na preparação. Qual o lugar escolhido por eles? A Bahia. Tem lugar mais brasileiro que a Bahia? Não satisfeitos, eles ainda tocaram o zaralho por lá: dançaram com os índios, fizeram o lepo-lepo, cantaram o hino do Bahia… Até camisa do Flamengo os caras trouxeram.

O meio-campo alemão jogou como me diziam que jogavam os brasileiros. Fez o que quis, trocou passes sem errar e com velocidade estonteante, muita movimentação e, ocasionalmente, lances plásticos. A Alemanha já era mais o Brasil na Copa que o próprio Brasil. 

O massacre foi só a etapa final desse processo. 

V.
Quando meu neto me perguntar, vou dizer que, apesar de ter apostado no Brasil no bolão, eu comecei a duvidar no momento que vi a escalação do Bernard como titular. Para não ficar só na lorota e não parecer um mero pessimista de última hora, mostrarei a profética mensagem que enviei a um amigo meu assim que descobri isso, por volta de vinte minutos antes do jogo: medo do Bernard nesse time.

A culpa, obviamente, não foi dele. Mas, ao escalar ele, Felipão nada fez para cobrir o buraco negro que existia no meio de campo do canarinho, latifúndio generoso nos quais os alemães acharam espaço para fazer o que bem entendessem durante o jogo todo. Terra em que se plantando tudo dá.

Direi ao meu filho que o Brasil foi melhor na partida. Mas farei a seguinte ressalva: a partida só durou dez minutos, tempo de Müller fazer o primeiro gol tedesco e abrir a porteira. Até lá, o Brasil até tentou fazer uma partida digna e conseguia equilibrar o jogo, apesar de partir pra cima ao caralho e deixar muitos espaços livres pro envolvente toque de bola germânico.

Dez minutos depois, em um curto intervalo de tempo, viriam os outros gols. Não acreditei quando vi o gol de Klose. Até ali, ainda acreditava numa virada, ainda mais com a torcida gritando como ainda não havia nesta Copa. Mas, depois que vi os alemães fazendo o que queriam na nossa defesa, confesso que fiquei desesperançado. Um pouco de mim, todavia, ainda gritava internamente, junto com a torcida: eu acredito. 

Aí veio o terceiro gol. Vi Lahm correndo tranqüilo, cruzando para Müller, que não alcança e acaba deixando a bola sobrar para o Kroos finalizar, com força e tranquilidade, contra a meta de Júlio César. Ali, eu desabei. Levantei do sofá na hora. Não queria mais ver o jogo. Fui para o meu quarto com meus olhos marejados, uma sensação de derrota reforçada pelas inúmeras mensagens de amigos também incrédulos com o que acontecia. Ali, eu me reergui. Lembrei do Vasco, da virada do século. Pensei: esse time também consegue. Voltei. E, ao mesmo tempo que eu entrava na sala, Khedira entrava na área, após receber passe preciso de Kroos que havia roubado a bola de um displicente Fernandinho, fazer a devolução e bola na rede. 4x0.

Ali eu já não sentia mais nada. Estava atordoado. Diria que anestesiado pela dor. O resto do jogo se passou, para mim, como se num pesadelo. Eu me sentia descolado da realidade. Era como se eu não estivesse lá, assistindo a festa alemã no nosso quintal. E, a cada ataque germânico, eu só conseguia pensar: de novo não, já chega. Acredito que éramos 200 milhões que nos sentíamos perdidos, inclusive os 11 em campo, a julgar pelo passei alemão, perante o qual a seleção permaneceu atônita.

Depois do jogo, aquele mesmo amigo meu mandou mensagem dizendo que "está muito triste hoje". Minha resposta foi: vai piorar. Hoje não entendemos. Amanhã, vamos entender melhor. Daqui a uma semana, melhor ainda. Sete dias: um por gol. E assim progressivamente. A Alemanha abriu a ferida aberta pelo Uruguai em 1950 e a remexeu de tudo quanto é jeito.

Por hoje, ela destina sem doer. 

VI.
Dom Sebastião assumiu o trono português aos 14 anos, em 1568. Dez anos depois, seria derrotado na batalha Alcácer Quibir e desapareceria. Durante séculos, sua figura permaneceu como uma lenda em Portugal. Logo depois, o trono lusitano passaria para Filipe, da Espanha, tornando o país submisso aos seus odiados vizinhos. Eventualmente, eles restituíram sua independência, mas o país nunca mais foi o mesmo. Passou de potência a figurante, papel que desempenha até hoje.Os portugueses, no entanto,  esperaram ansiosamente pelo retorno de seu rei perdido, como que o de um messias, que traria o país de volta à sua era de ouro. 

Estão esperando até hoje.

Neymar assumiu o trono na seleção brasileira aos 18 anos. Ferido em batalha pelo colombiano Zuñiga, desapareceu na reta final da Copa, deixando muitos torcedores e mesmo os próprios jogadores e membros da comissão técnica órfãos. Neymar virou o Dom Sebastião da nação. Já se ouvem aqui e ali torcedores dizendo que "se ele tivesse jogado, não teria sido assim."

Teria sim. Nós sabemos disso. Sabemos até que o time sentiu mais falta de Thiago Silva do que do seu camisa 10. O problema não estava no ataque. Estava no meio campo que cedia espaços generosos e na defesa que corria feito barata tonta. O problema foi aquele time perdido. O problema foi tanta coisa que eu confesso nem saber mais qual foi. 

Mas não foi Neymar.

VII.
Moro no Rio. Sou torcedor do Vasco desde a infância. Meu time, além de sua história incrível,  teve um momento brilhante na década de 90, montando alguns dos melhores times que já desfilaram nos relvados brasileiros. De quando passei a acompanhar futebol assiduamente para cá, no entanto, o time tem amargado as suas piores temporadas de sempre. Os títulos escassearam. Os rebaixamentos, multiplicaram-se.

Por influência da família, tenho grande carinho pelo Bangu, vice-campeão brasileiro de 1985, disputou a Libertadores em 1986. Casa de grandes jogadores, o principal deles Domingos da Guia, considerado até hoje um dos maiores zagueiros da história do futebol brasileiro e da seleção. Apenas recentemente voltou a disputar a série A do campeonato carioca, na qual empilha campanhas medíocres. 

O Brasil passou 24 anos sem ganhar a Copa. Em 1994, foi campeão. 1998, foi vice. 2002, campeão novamente, com Ronaldo, ainda fenômeno, no auge e sobrando em campo. Desde então, acumula eliminações nas quartas e, hoje, sofreu a maior humilhação de sua história. 

Talvez eu devesse considerar mudar de esporte.