8 de abr. de 2017

Minha égua.

Acho que foi Machado de Assis quem comparou sua imaginação a uma égua. Qualquer brisa lhe dava um potro e lá ia ela galopando pelas pradarias afora. Não consigo pensar em outra definição melhor de imaginação e era só nisso que eu pensava enquanto eu fitava aquela mulher do outro lado do metrô. 

O motivo era simples: ela me lembrava alguém que eu conhecia. Eu sempre tive uma memória muito boa para as feições das pessoas, embora não tão boa assim para os seus nomes. E enquanto eu mirava aquela mulher ali, em pé, no fundo do metrô, eu tentava me lembrar quem ela era. 

Minhas reminiscências me levaram a uma caloura minha. Pegamos algumas matérias juntos no início do curso, porque ela havia adiantado as matérias de Direito Penal. Achei estranho ela não ter me reconhecido, já que sempre nos falávamos e eu percebi que fazia muito tempo que não a via. Aí eu me lembrei o motivo: ela morreu em um acidente de carro com o namorado quando estávamos nos períodos intermediários do curso. 

Corta. Volta para o primeiro parágrafo. 

Aí entra a imaginação. 

Na minha mente começaram a surgir várias teorias ligando a mulher desconhecida a minha falecida caloura. Eram irmãs? Gêmeas separadas? Ela tinha voltado dos mortos? Ela estava no Nepal com Élvis esse tempo todo? Eventualmente aquela estranha se tornou uma mãe desesperançosa buscando superar a dor da perda de sua filha. 

Eventualmente eu desliguei meus pensamentos dessa mulher e passei a refletir sobre outras coisas. Vocês ficariam surpresos se soubesse o que é capaz de passar pela minha cabeça em uma hora nos trilhos do metrô. 

Vi um lugar vazio, num daqueles bancos virados para o corredor e sentei. Duas estações depois, a mulher sentou exatamente de frente para mim. O que, naturalmente, fez com a minha imaginação fosse novamente a galope. 

Não que ela parecesse se importar, já que ela estava muito absorta digitando em seu celular. Presumivelmente, no WhatsApp. Como o sinal dela funciona no metrô, jamais entenderei. Eis que, no meio de um fluxo incessante de mensagens, ela subitamente para e começa a encarar o ar com a boca aberta como se fosse um Peixe Lua. 


GLUB GLUB GLUB

Em questão de segundos, ela passou a movimentar sua cabeça freneticamente, direcionando o seu olhar para diferentes direções, sem parar em um ponto fixo. Algo que, curiosamente, um Peixe Lua é incapaz de fazer, uma vez que desprovido de pescoço. Aquilo me chamou muita atenção, naturalmente. Como se o seu aspecto insólito já não fosse o suficiente, ainda havia toda uma carga imaginativa e emocional por trás que rapidamente pôs a minha égua a galopar a toda velocidade pelos verdejantes campos da estação Siqueira Campos. 

Enquanto a fitava, intensamente, ia pensando o que poderia ter causado aquela cara de espanto. Algo grave? Algo bom demais para ser verdade? Sua filha encontrada? Outra filha perdida? A partir daí passei a me desprender dela e comecei a me aprofundar nas diferentes dimensões do sofrimento humano e na  eterna miséria que é a vida. Neste momento eu percebi que ela também me olhava, séria, de volta. Fiquei constrangido.

Veja bem, é comum que eu me perca em meio aos meus pensamentos. Principalmente nessas situações que eu não tenho nada para fazer. Em geral, nessas horas você pode ver meu olhar, sério e meio opaco, direcionado intensamente para um ponto fixo, em geral durante longos períodos de tempo. Pode ser qualquer coisa: um sapato, uma placa, as luzes de uma pista de dança (sim, já aconteceu mais de uma vez e, sim, eu parei subitamente de dançar em todas as ocasiões) enfim, qualquer coisa. 

O ponto fixo, no caso, era a mulher. 

E, enquanto nos encarávamos, ela séria e eu constrangido, vi que o trem se aproximava de mais uma estação e fiz o que qualquer um faria: levantei sorrateiramente, saí do trem e troquei de vagão para evitar uma situação potencialmente constrangedora, aproveitando para jogar o copo vazio de milk shake que estava na minha mão desde o centro no lixo. 

Obviamente não me desculpei com a mulher pelo transtorno causado, embora eu sinta que devesse.

Ela não entenderia.