31 de dez. de 2011

Zé vs Alcidess(2)

Ontem, como não estava fazendo nada, eu propus ao meu amigo Alcidess (nunca entendi porque dois esses) um duelo de contos. Ligeiramente diferente do primeiro. Cada um tinha que usar três frases escolhidas pelo outro no terceiro, sexto e nono paragráfos. Além disso, tínhamos que incluir, no sétimo parágrafo, uma situação inesperada elaborada pelo outro.Mas nós só podíamos vê-las ao chegar no sétimo paragráfo,  de modo que a coerência ficou seriamente prejudicada. O Alcidess teve que usar as seguintes frases:
"eu vi a lua e ela é azul"
"tem certeza que esses pingüins são domesticados" e
"eu quero um maçarico mamãe"
e usou a seguinte situação absurda:
"Um ornitorrinco saltitante usando pompons e uma curiosa sapatilha verde choque pergunta para a senhora gorda com vestido roxo claro de babados: "com licença, a senhora viu uns anões disfarçados de pingüins por aqui? eles me pediram um maçarico verde emprestado” "
Já eu fiquei com as seguintes frases:
"um tolo vale mais que um saco de farinha"
"uma gaiola é sempre uma gaiola" e
"viver é uma bobagem"
e eu usei a seguinte situação:
"É imediatamente revelado que a assassina é na verdade uma das personalidades múltiplas de um dos homens do enredo. A personalidade deve se chamar Rita."

O dele

Era uma noite fria e escura. Além de fria e escura era também úmida e ventosa. Definitivamente uma combinação de qualidades que a desqualificaria como uma noite de verão. Porém, a realidade não aceita regras impostas por escritores comuns e toma para a si as rédeas do que considera bom fazer ou ignorar. A realidade é uma dama geniosa.

Acompanhemos agora um cavalheiro que fazia par com todas as qualidades dessa noite, era frio, encapuzado, nauseabundo e um pouco menos do que se consideraria gordo. Tinha também um bigode e um cavanhaque desses que dizem aos passantes que seria melhor confiar em uma cobra do que no dono da composição facial.

Acompanhemos pois esse cavalheiro na mesa de carteado onde se encontrava. Junto com outros três cavalheiros enquanto jogavam amistosamente uma partida de pôquer. A fumaça dos charutos desses cavalheiros antiquados era tamanha que a estratégia na mesa resumia-se a simplesmente modificar a roubar, encoberto pela clausura do nevoeiro de alcatrão, as fichas do jogador ao lado enquanto este se ocupava de fazer o mesmo com o colega próximo. Eis que nesse estado de concentração e de estratagemas mil que se fazia presente um dos convivas, ligeiramente mais embriagado do que os outros exclama abobalhado: “eu via a Lua! E... ela é azul!”

Todos os presentes imediatamente dirigem seus olhares para uma estupenda bola azul que se eleva sobre as faces pasmadas e incrédulas dos pecadores que imediatamente tomam consciência de terem diante de si uma revelação divina. Iluminados pela luz azul um dos ilustres jogadores, o nosso companheiro avantajado!, menos ébrio que os demais nota que a esfera não é de maneira nenhuma a Lua. Embora pareça de fato ser feita de queijo.

Uma análise mais atenta remove de supetão todas as dúvidas acerca da natureza divina da aparição que se lhes fazia. A bola azul era tão só e apenasmente o lustre que pendia sobre as suas cabeças havia as tantas horas que jogavam. A diferença é que agora a lâmpada que estava acesa havia mudado do brilho branco e artificial de uma lâmpada fluorescente para o brilho azulado e intenso de alguma coisa sobrenatural.

De chofre a cena se transforma! O lustre que perigosamente pendia no ar sustento por uma corrente desaba sobre a mesa dos apostadores! Não se parte em cacos, ao contrário, intacto permanece girando com sua forma esférica no centro da mesa fazendo o barulho irritante típico de todo barulho indesejado. Do lustre saiu um diabrete que se fez presente no centro da mesa abrindo suas asas infernais e espalhando um brilho negro do fundo de seus pelos ensebados. Imediatamente acompanhado de outros diabretes que tomavam a sala não voando, mas andando a passos tortos e arrastando as assas negras pela mesa antes os olhos incrédulos de nossos gentis-homens. “Tem certeza de que esses pinguins são domesticados?” retrucou ante os olhos incrédulos o nosso primeiro homem, o ébrio chegado a dizer tonterias.

Eis que os diabretes usando seus poderes diabólicos das trevas do mal enfeitiçam os jogadores que desabam em coma profundo! Embriagados em uma viagem lisérgica os quatro convivas se reúnem em pesadelo. Ao fundo psicodélico distinguem músicas dos anos 70 enquanto diante de si veem desenrolar uma cena que lhes arranca golfadas de angústia do estômago. Um ornitorrinco enfurecido e tomado de bestial sede de sangue avança sobre uma mulher rechonchuda ameaçando-a com suas patas ferozes cobertas por sapatos verde choque de onde se entreveem garras demoníacas que por sua vez brandem coléricos pompons cor-de-rosa como clavas forjadas no fogo ardente dos infernos. Interrogava a pobre mulher: “Com licença – o sarcasmo escorria-lhe pelo cato do bico – a senhora viu uns anões disfarçados de pingüins por aqui? eles me pediram um maçarico verde emprestado?”

O chão se abre e os quatro companheiros de carteado desabam no abismo sem fundo das cores antes inimagináveis e por entre carmesins e purpuróseos flutuam rumo ao desconhecido das profundezas da criação humana. Quando estacam! E param em pleno ar, flutuando entre manchas coloridas como numa lâmpada de lava. Dissolvem-se seus corpos e entre derretidos coloridos mesclam-se os quatro em uma grande bola de sebo amarelo-real que explode em pinceladas oníricas com as 14 milhões de cores indescritíveis aos olhos intreinados dos humanos.

Acordam os quatro sobre a mesa, falta-lhes algo. Sentem um vazio interior que não se assemelha à fome mas a algo tão mais profundo... Veem um bilhete: “Obrigado pelas almas” e imediatamente lembram-se dos diabretes. Bêbados que estão, contudo, não tomam grandes impressões da história. Olha a mesa bagunçada e o lustre caído no meio de tudo. O quarto participante, que até o presente momento se mantivera mudo apesar dos efeitos do álcool e dos acontecimentos, levanta-se e proclama: “eu quero um maçarico, mamãe!” E tão logo recebe o instrumento requisitado sobe destemido na mesa decidido a consertar o lustre. Ao que é prontamente aplaudido pelos outros que lhe elogiam a clareza de ideias.

Bamboleando, equilibra-se no feltro engordurado sujo de whisky. Até que por mister destino. Espatifa-se quebrando o pescoço e levando consigo os outros três amigos num incêndio que devastou de tal forma o quarto que foi impossível para os policiais saber quem afinal estava perdendo e teria um motivo para matar os outros três.


O meu

Filho, vai comprar farinha ela disse. Porque não era ela que tava de pijama, lógico que era aqui do lado. Mercados não costumam mudar de lugar. Pelo menos não os que eu conheço. Não os supermercados e mercadinhos de concreto. Valeria a pena viver num mundo onde supermercados saem andando por aí impunemente? Como feiras itinerantes. Se fosse um mercadinho itinerante, eu talvez tivesse como mandar outra pessoa fazer isso. Alguém com um carro. Mas como não tivesse escapatória, saltitou levemente e continuou seu caminho numa falsa alegria contagiante. Ah! Ele assoviava também. Assovio ou assobio? nunca soube a diferença...

Farinha farinha farinha farinha farinha farinha rinha fa rinha fa rinha fa rinha as palavras ficam realmente engraçadas depois que você repete elas. Algumas palavras não precisam ser repetidas para ficarem engraçadas. Tipo jaculatória. Você poderia falar jaculatória um milhão de vezes sem saber o que é jaculatória e riria do mesmo jeito. Hmmm farinha farinha farinha cadê cadê cadê AQUI!!

Meio saco de farinha por favor. 15 moedinhas por favor. Ok. Aceita um tolo. Não. Como não?! Um tolo vale mais que um saco de farinha! Não aceitamos tolos nessa loja senhor, apenas moedinhas. E depois você ainda quer que eu leve o troco em balinhas? Senhor, nós aceitamos apenas moedinhas. Ah, qual foi... O que eu vou fazer com meu irmão mais novo então? O caixa olha para os lados sorrateiramente e sussurra rapidamente em seu ouvido seu irmãozinho é mesmo um tolo? da pior qualidade respondeu baixinho excelente, negócio fechado. Mas o senhor terá que aceitar o troco em balinhas.

Ele voltou pra casa certamente mais alegre do que quando tinha saído. Estranhamente, demorou menos tempo para voltar para casa do que para ir para o mercadinho. Quem sabe então era verdade o que o tio Carlinhos sempre dizia nos jantares de família (entre o pavê ou pacumê? e chamar o vovô de aeroporto de mosquito) demoramos mais para ir do que para voltar. Ou talvez tenha sido só aquele atalho mesmo.

Oi mãe trouxe a farinha. Que bom filho! Cadê seu irmãozinho. Troquei ele pela farinha. Ah, tudo bem, seu pai e eu vamos fazer outro, não tem problema. E o troco éééééééé eu peguei o troco em balinha. O QUÊ!?! VOCÊ NÃO TEM RESPEITO PELO TRABALHO DOS SEUS PAIS NÃO?!?! TRÊS ANOS NA SUA GAIOLA!!!! Mas mas foi a condição do cara pra trocar o saco pelo meu irmãozinho Hmmm, boa troca. Seis meses pelas moedinhas. Walter, o juninho tá quase pronto pra Wall Street.

Oh!
Morte lenta e dolorosa!
Eu a saúdo!
Saúdo como amiga, companheira
saúdo-te como amante!
Oh Bela Morte Lenta e cala boca seu viadinho! Você só tá a cinco minutos nessa gaiola e já tá desesperado. Você não é metade do homem que seu pai é! Eu não tenho metade da idade dele. Cale-se! Deixe-me sair! Isso é insano! Isso é um castigo. Uma gaiola é sempre uma gaiola! E um castigo é sempre um castigo. Quem sabe da próxima vez você não pense antes de aceitar o troco em balinhas?

Espera mãe! Isso é mais do que moedinhas e balinhas! É sobre liberdade! Dignidade! Quem vai comprar farinha pra você agora que eu estou trancado nessa gaiola? Hmm é verdade... Então você vai me libertar? Não seu frangote, eu vou te matar. O quê? Ela puxou a faca engole esse choro ou eu te degolo. Ele se espremeu num dos cantos da sua gaiola redonda. Pare de choramingar balbuciar implorar solte meus pés disse ela desferindo um violento pontapé no garoto que cinco segundos antes se encontrava prostrado aos seus pés isso é pelas moedinhas disse ela e seu rancor foi a última coisa que ele ouviu.

Então, o juninho não vem pra mesa. Ele já está na mesa? Ele é invisível agora? Ele é seu empadão. Walter engasgou com o susto. Nosso filho... Ele tem um paladar agradável. Ah, obrigada, demorou um tempão pra matar. Escuta Shirley disse Walter sério encarando-a através das lentes de seus óculos porque você fez isso? Não fui eu, foi a Rita. Rita? Quem é Rita? Minha personalidade assassina. Tá bom. Que cara é essa. Ela avisou que vai fazer um sanduíche pro Tião. Outra personalidade? Ahã. Ah, ela me mandou te matar.

Shirley, para trás. Eu não respondo por esse nome. Sejamos razoáveis Rita. Não, eu quero seu sangue. Nos olhos de Rita faiscavam o desejo, a cobiça, o gozo infinito. Eu sou seu marido! Não, você é o marido da Shirley. E cadê a Shirley? Tá ocupada. Com o Tião. Rita, guarda essa faca, por favor! Eu imploro, poupe minha vida. Viver é uma bobagem.

Walter chorou.

Shirley estava sentada num canto acolchoado. Balançava freneticamente sua cabeça de trás para frente. Abraçava seus joelhos. Era a única posição que lhe era permitida pela camisa de força que usava. Então Rita, o que fazemos agora? Esperamos meu docinho. Pelo quê? Não sei, docinho, não sei. Nós vamos esperar para sempre? Talvez. Uma lágrima escorreu pelo rosto de Shirley. Não fique assim meu docinho disse Rita ops, eu preciso sair rapidinho. O Tião tá me chamando.

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