22 de ago. de 2012


Todos os dias. A mesma rotina. Todos os dias. Todos. Sem exceção. Todas as rotinas os mesmos dias todos os dias. E suas mesmas rotinas. Porque mesmo as rotinas podem se ser diferentes entre si, repetindo-se eternamente num ciclo repetitivo de inovação.

Todos os dias.

Se pelo menos eu ouvisse alguma música. Mas a única música que eu ouço são os pis ritmados das máquinas  que me cercam. Tum tum tum tum pi pi pi tum pi pi. Essa sinfonia, tocada por uma orquestra de diferentes coisas ligadas a mim, me acompanha rumo ao meu destino final. Será que eu finalmente vou sair dessa cama? Piiiiiiiiiiiii de vez em quando minha intranqüilidade de sons retorcidos e entrelaçados é interrompida por um longo pi agudo. Alguém escapou.

E eu continuo preso. Preso a essa cama. Ao leito da minha miséria. Preso por correntes. Correntes que me alimentam. Correntes que me respiram. Correntes que me são porque eu não tenho mais autonomia para me ser. Correntes que estão entranhadas tão profundamente no meu corpo que já não são mais parte de mim, e sim eu que sou apenas mais uma extremidade (esquisita) delas. Perdão, já fui. Hoje, eu não sou mais.

Se pelo menos eu tivesse vista pra praia. Mas só o que eu vejo é cinza. Cinza e áspero da parede do meu quarto. Tão cinza e tão áspero como isso que insistem em dizer que eu vivo. Isso que eu fiz de mim e que hoje eu me sou tão intensamente que me chego a não ser. Se pelo menos eu tivesse vista pra praia eu poderia me distrair um pouco enquanto eu espero a morte chegar num compasso sincopado de pis, piiis, pi-pis tuns e outros sons. Mas hoje eu sou apenas o que ainda ecoa de uma outrora existência.  Sou o som que morre ao fundo bem mais fundo que o ouvido alcança. Se pelo menos eu existisse...

Mas eu não existo, eu apenas espero. E nesse esperar eu suponho que vivo, mesmo que esteja morto. Mesmo que eu seja apenas mais um aparelho, apenas uma decoração desse necrotério que respira.

Às vezes, minha porta se abre para que um homem de branco entre. Ele segura sua prancheta, balança a cabeça como quem diz tão cedo você não vai, faz alguns ajustes e saí caminhando melancolicamente. Aí vem uma mulher (de branco) e aumenta minha dose de morfina. E eu volto a viver por um momento. Eu sou.  Mas (tão) logo o efeito passa, meus sonhos e ilusões desmoronam como uma fortaleza e eu volto a minha realidade de dores, solidão, espera. Mas de repente eu lembro que minhas dores são tão falsas quanto minhas alegrias. Dores são para os vivos. Eu sou um morto apenas esperando para morrer. Como uma lagarta que vira borboleta dentro de um casulo. Exceto que meu casulocorpo já é podre. E eu apodreço cada vez mais dentro dele, esperando pelo dia em que eu finalmente deixarei de voar para sair rastejando como um miserável. Eu era.

Mamãe, porque ainda está ligado?  Desliga, mamãe, desliga. Desliga todos os barulhos, todos esses defeitos, esses incômodos que me incomodam. Desliga esses aparelhos quebrados. Desliga o que é desperdício ligar, mamãe. Desliga o microondas. Eu tenho medo, mamãe. Alguém, por favor, alguém.

O som das pessoas conversando evapora e chega ao meu quarto pela janela – que de tão pequena e fechada não merece esse título – como se fosse um cheiro. E esse doce aroma sonoro misturado a todos os cheiros propriamente cheirados e todos os vapores e cores que emergem da rua só pra me lembrar da vida que outrora foi minha e eu penso que tudo um dia já valeu à pena, tudo um dia já foi bonito, tudo um dia já foi tão... vivo. Mas meus dias se foram e deles só o que resta são as projeções quebradas de sonhos que viraram realidade só depois de virarem pesadelos.

Como é triste o fim. E como é triste não saber quando o fim termina. Não há nada pior que viver preso ao fim que se prolonga como o resto de pasta de dente que insiste em ficar dentro do tubo. O fim que recomeça a cada instante. O fim que não tem fim. Um ciclo.

Odeio quando chove. Porque quando chove, e só quando chove, minha janela fica aberta. E mesmo que seja apenas uma brecha no cinza áspero da minha vida, é o suficiente para me deixar molhado. A água penetra minha pele e vai mofando meus ossos e enferrujando meus músculos. Cada vez mais eu sou menos. Definhando.

A porta se abre. Mas não é um médico. Nem uma enfermeira. Queria morfina. É um raro parente distante. Quero morfina. Ele me olha como se não me conhecesse. Não faz mal. eu também não o conheço e rejeito sua caridade. Não posso mudar meu testamento e mesmo que pudesse nada mais tenho. O tempo roubou tudo de mim. Minha vitalidade, meus sonhos. O brilho no meu olhar. O tempo roubou minha morfina.

E conforme vai sendo escrito, ele impõem mais e mais dificuldade. Ele sabe que, quanto mais é escrito, mais viverá. A história termina para que finalmente ela seja livre como uma brisa que desintegra lentamente o personagem, derretido em pó carregado pelo vento.  


Todos os dias.

Nenhum comentário:

Postar um comentário